terça-feira, 11 de agosto de 2015

De L. (Carta a P. - suavecoisanenhuma)

P.,

Foi aos 9 anos, durante uma exposição do Monet no MASP,  que aprendi que não são poucas as coisas que se tornam mais bonitas - e mais inteligíveis - à distância; e que distância para os olhos é espaço, mas para a memória, distância é tempo. O que transforma minha memória é o tempo que se espalha sobre ela, portanto, o passado me parece sempre melhor e mais bonito - parece fazer mais sentido. A ponte de Giverny é um retrato de tudo aquilo que guardo: só adquire um pouco de beleza - e mais, só faz sentido - quando se torna passado. É o efeito nefasto que o desenrolar do tempo exerce sobre mim, que sou incapaz de olhar com bons olhos para o presente.

Você me encontrou na casa de onde emergimos juntas, arrancando o limbo que carregávamos atado à consciência, cegas pelo excesso de luz quando ainda estávamos prestes a recebê-la. Como weird fishes, você me levou para a borda, onde havia terra e segurança. Chegando lá, me ensinou que não é necessário ter vegonha daquilo que se sente, e ainda: me ensinou a escolher as palavras como quem escolhe as tintas de um quadro.

A observar o mundo através da cor, e não do desenho.

Há algo de perverso na maneira que criamos obstáculos que nos impedem de termos nossas memórias renovadas. Amo meu passado como quem ama uma planta que está prestes a secar, mas não seca - nunca. Obviamente só uma mulher que tenha amado mais do que amo é capaz de também encontrar ilogicidades nessa matermática do amor contemporâneo, ou anomalias no discurso da Maura, nossa íntima desconhecida. Sei que você está ciente dos meus humores, ciente compassionada de minhas equacionadas angústias e se pudesse diria que eu me afastasse do centro dessa coisa que não sei o nome, dessa coisa que é nada e sendo nada ainda assim prossegue me consumindo, diria que eu me afastasse e continuasse no exercício da procura, e eu continuo, em todos os cantos frestas vincos, eu desprezando álgebra e discurso ilógico incoerente absurdo: danem-se os números, porque é melhor que se afogue o peixe que não vira cardume.

Foram lições possíveis apenas no silêncio, onde os sentimentos não estão submetidos à deformidade das palavras. Porém, no silêncio, nem sempre é possível manter os olhos no chão; há sempre a necessidade da compreensão táctil dos problemas gestos barulhos. Há sempre uma tristeza que pressente, que adivinha o outono.

Você me  avisou de que as verdades se repetiriam ao longo do tempo formando círculos concêntricos: "preciso me aproximar cada vez mais das margens desses círculos", pensei. Tempo é uma das poucas noções cuja existência há de ser sempre indubitável; um cego, por exemplo, é capaz de medir o tamanho de um espaço pelo tempo que demora para percorrê-lo. É preciso separar o discurso das possibilidades, ou tatearemos o nada. Como cegos. Para sempre. Toda uma vida calculando distâncias  no escuro e venerando a beleza do passado, esse abismo intransponível.

Você participa de todo o amor que tenho pela vida.

Amor, amor.

Um beijo,
[que tivesse um blue,
isto é
imitasse feliz
a delicadeza, a sua
assim como um tropeço]


L.



[e senti como um abraço "New", do paul mccartney, por quem temos profundo carinho em musicais internos]